Jorge havia passado a
noite toda tossindo mais do que o normal, essa tosse chata já persistia por
mais de duas semanas, só que nesta última noite a tosse não deu trégua, e o
pobre coitado sequer conseguiu dormir. Mas sem plano de saúde, com muito
trabalho por fazer na obra, e com um patrão nada maleável, ele resolveu ir
remediando o problema, e remédio mesmo que é bom, nada.
Pela manhã ele deixou seus
três filhos com a vizinha - que também era sua tia-avó - e partiu com a esposa
Letícia para o posto médico mais perto do morro em que morava.
Jorge residia no pico do
morro, praticamente na última casa, se é que podemos chamar de casa um cômodo
dividido por cortinas, com apenas uma janela, telhas quebradas e esgoto
correndo bem na porta.
Apesar de o ditado popular
dizer que “pra descer todo santo ajuda”, até a descida da colina estava sendo
tortuosa para o cansado Jorge. A cada dez degraus de escada, vinha uma tosse.
Quando finalmente chegou ao asfalto, as tosses diminuíram, mas ele ainda se
sentia muito fraco, e sequer pôde repousar sentado no ônibus, já que o mesmo
estava completamente lotado às oito da manhã. Algumas pessoas até repararam que
ele estava muito mal, mas na dúvida, preferiram permanecer sentadas.
Quando finalmente chegou
ao posto médico com sua esposa, um milagre aconteceu logo de cara: o local
estava vazio! Jorge chegou até a se animar, afinal de contas, aquele lugar
vivia mais lotado que banco em dia de pagamento, e isso também era um fator que
sempre lhe desencorajava a procurar um médico.
Ao se apresentar na
enfermaria para fazer a ficha, a enfermeira foi logo perguntando os dados:
- Nome?
- Jorge Domingues da
Silva.
- Idade?
- Vinte e sete.
- Cor?
- Moreno.
- Não, meu querido. No
Brasil você só pode se declarar dentro de cinco cores, que são branco, pardo,
negro, amarelo e índio.
- Então bota amarelo. – respondeu
o enfático Jorge.
Nesse momento, a
enfermeira que atendia Jorge, uma loira – dessas de pentelho preto – olhou para
a outra enfermeira que estava sentada ao seu lado, e ambas fizeram aquela cara
de “esse negão está de sacanagem”. A loira respirou fundo, olhou bem para a
face do Jorge e disse:
- Você é japonês por
acaso, pra se declarar amarelo?
Jorge olhou para sua
esposa e riu, mas foi um riso de pessoa sem graça, que não tem o que fazer e
acaba rindo para não ficar ainda mais sem jeito.
- Então é pardo, né. –
disse Jorge, mais perguntando do que afirmando.
A enfermeira então marcou
pardo na ficha, mesmo a contragosto, até porque Jorge era um negro de 1,90m de
altura, a cor da sua pele era a mais escura possível, então o termo pardo soava
como um grande eufemismo para todos que ali estavam. Mas como a enfermeira
loira parecia estar com pressa, ela não quis se alongar nessas questões, até
porque percebeu que seria em vão. E assim ela continuou com a ficha:
- Você faz uso de algum
tipo de droga lícita ou ilícita?
Depois de dar uma pausa,
Jorge respondeu:
- Sim, fumo maconha.
Nesse momento, a esposa
Letícia fez cara feia e deu uma cutucada nele, mas foi logo advertida.
- Ué, mulher, tem que
falar, a moça perguntou.
- Pois é, tem que falar
mesmo, pois tem remédio que não pode fazer associação, se o paciente não falar
e tomar o medicamente errado, pode até morrer. – disse a enfermeira loira,
fazendo caras e bocas para a esposa de Jorge.
Por fim, a ficha foi
preenchida e as enfermeiras pediram para que o paciente aguardasse, pois logo seria
chamado.
Enquanto de um lado Jorge
cochichava sobre as enfermeiras com a esposa, de outro lado as enfermeiras
cochichavam sobre Jorge.
Ao ser chamado no
consultório, Jorge foi fitado da cabeça aos pés pelas enfermeiras; sua esposa
fez cara de nojo, mas Jorge nem viu nada, estava focado, queria apenas ser
atendido e ser curado daquela tosse infernal.
Depois de sair do
consultório ele foi encaminhado até a radiografia, a pneumologista havia pedido
uma chapa do tórax.
Horas depois, a mesma
enfermeira que havia atendido Jorge pela manhã chegou com a radiografia dele
nas mãos, mostrou para a colega e disse:
- Olha amiga, coitado do
negro moreno, está com tuberculose.
- Ih, não vai mais poder
fumar maconha – completou a amiga.
Após pegar o resultado e ganhar uma sacola cheia de
antibióticos, Jorge foi embora desolado. Não poderia trabalhar tão cedo, não
poderia fumar sua maconha pelo menos por seis meses, porém, ao chegar à porta
de casa teria que ser recebido pelo esgoto que já era praticamente da família;
e olha que a doutora pediu para que ele mantivesse uma boa higiene. Pobre
Jorge.
Bruno Rico.
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