MÚSICAS QUE ME FAZEM POETIZAR #2



Letra:

Um homem também chora
Menina morena
Também deseja colo
Palavras amenas...
Precisa de carinho
Precisa de ternura
Precisa de um abraço
Da própria candura...
Guerreiros são pessoas
Tão fortes, tão frágeis
Guerreiros são meninos
No fundo do peito...
Precisam de um descanso
Precisam de um remanso
Precisam de um sono
Que os tornem refeitos...
É triste ver meu homem
Guerreiro menino
Com a barra do seu tempo
Por sobre seus ombros...
Eu vejo que ele berra
Eu vejo que ele sangra
A dor que tem no peito
Pois ama e ama...
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho...
E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata...
Não dá prá ser feliz
Não dá prá ser feliz...
É triste ver meu homem
Guerreiro menino
Com a barra de seu tempo
Por sobre seus ombros...
Eu vejo que ele sangra
Eu vejo que ele berra
A dor que tem no peito
Pois ama e ama...
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho...
E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata...
Não dá prá ser feliz
Não dá prá ser feliz...
Não dá prá ser feliz
Não dá prá ser feliz
Não dá prá ser feliz...

Bom dia, Vietnã!


O barulho causado pelas vidraças soltas da janela do ônibus é ensurdecedor, elas se debatem de uma forma insuportável, a tal ponto deu chegar a me enfurecer e não conseguir mais tirar o meu famoso cochilo que é praticamente sagrado nas manhãs em que passo dentro do lotadão - apelido carinhoso que dou ao ônibus que pego todo dia para trabalhar.
A empresa desse ônibus que eu viajo está cada dia pior, a passagem está um absurdo de cara, e eu não vejo melhoria alguma, muito pelo contrário, o gado, ou melhor, os passageiros são tratados como lixo, e carregados como tal.
São seis e meia da manhã de uma segunda feira, e tirando o som irritante que não me deixou dormir, a vida dentro do lotadão segue a mesma rotina de sempre.
Como eu pego o meu "querido" transporte no ponto final, eu ainda consigo arranjar um lugar para repousar esse corpo magro, porém pesado de tanto cansaço. E como eu também solto no outro ponto final, eu consigo tirar o meu cochilo sem grandes preocupações de passar do local onde eu vou descer, até porque, se eu dormir demais, o Galego me acorda; Galego é o apelido que eu dei para o cobrador do meu lotadão, aliás, eu estou com vinte e três anos na cara e não perco essa mania de infância de ficar colocando apelido nas coisas e nas pessoas.
As pessoas que não tiveram a sorte que eu tive, de pegar a condução no ponto final, foram obrigadas a se espremer em pé mesmo. Mas eu falei em sorte? Perdão, a vida do pobre é tão ferrada que qualquer coisinha a mais em comparação ao outro sofredor acaba sendo encarada como vantagem ou sorte, mas quem tem sorte mesmo é quem não precisa estar aqui, e vai trabalhar dentro de um carro super confortável, enquanto o motorista particular regula o ar condicionado para que ele fique em clima de montanha, enquanto os passageiros do lotadão derretem que nem sorvete, em um clima de deserto do Saara ao meio dia.
Os desafortunados que me acompanham possuem praticamente a mesma feição; aquela aparência abatida e desanimada, que parece se agravar em uma manhã de segunda feira.
Alguns tentam se entreter com seus radinhos, outros leem alguma coisa no jornal, que ao meu ver só piora a situação, pois as notícias nunca são animadoras, eu nem sei pra que as pessoas ainda compram jornais, a dose depressiva daquelas linhas é muito forte, além do que, sai um dia, vem o outro e as tragédias são sempre as mesmas, só muda alguns detalhes, e eu particularmente não vejo graça nisso, eu gosto é de novidades.
Mas no lotadão é tudo sempre muito igual, por isso é que eu durmo, o tédio me dá sono. As aventuras e a quebra da mesmice ficam por conta do Dentinho, motorista oficial do meu foguete em forma de ônibus. Dentinho poderia facilmente fazer parte do elenco do filme Velozes e Furiosos, eu acho até que ele queria ser piloto de fórmula 1 quando criança, mas como faltou dinheiro ele acabou no ônibus mesmo, pobre coitado, foi nascer em um país que não sabe valorizar os seus talentos. Mas o bichinho corre demais, eu até comentei isso com ele um dia desses.
- Aí Dentinho, se tu corresse com as pernas do jeito que tu corre com esse ônibus, você poderia abandonar o trabalho e virar maratonista, pois iria fazer muito sucesso, até porque a sua vasta e pontuda dentição iria cruzar a linha de chegada antes de todo mundo. Mas nesse dia ele não gostou muito do elogio que fiz a sua pessoa, e me xingou com uns nomes que não vem ao caso expor aqui.
A única coisa que para e que deixa o mestre dos volantes puto da vida é o trânsito, mas como eu viajo bem cedo, não chego a pegar muito engarrafamento, salvo exceções, mas quando essas exceções acontecem o cara sai de si, ele fica profundamente transtornado quando fica parado, aquele ali tem combustível correndo nas veias.
O que eu não gosto no Dentinho, é que por conta da sua pressa constante, ele acaba por não pegar alguns passageiros, que ficam mofando no ponto esperando pelo próximo ônibus que às vezes faz o favor de não parar também. Tanto o Dentinho quanto os seus colegas motoristas, alegam que já não há mais lugar dentro da condução, e por isso eles não param, mas o camarada que está no ponto, já cansado fisicamente e principalmente mentalmente, antes mesmo de ir trabalhar, prefere muito mais ir amassado dentro do lotadão, do que ser esculachado pelo patrão, só por ter chegado mais uma dia fora do horário.
Os minutos vão passando e o Dentinho vai rasgando as ruas como se fosse um artista do asfalto. Pela janela eu observo as pessoas saindo para os seus destinos, alguns estão com pressa, outros parecem ainda estar dormindo, cada um se movimenta de um jeito, mas mesmo sem querer, todo mundo está se movimentando de alguma forma, a vida contemporânea da cidade grande exige isso, quem fica parado é engolido por um monstro invisível extremamente cruel. E por falar em cruel...
O meu destino está chegando. O ônibus estava tão cheio hoje, que até para descer no ponto final eu tive que passar por uma fila, mas hoje em dia existe fila até para morrer, essa do lotadão eu tiro de letra, e enquanto eu caminho a passos curtos, eu vou me espreguiçando e preparando minha alma e minha mente para mais uma batalha.
Depois de dar adeus para o lotadão e sua trupe, eu caminho mais alguns minutos até o trabalho, o sol já está ligado para aquecer os corpos, pena que esse mesmo sol não tem o poder de derreter o gelo dentro do coração de algumas pessoas.
São quase oito da manhã, mas o calor já é de meio dia, a minha camisa pólo branca já está toda amassada e suada, nem parece que eu estou pegando no trabalho agora, quem me vê, jura que eu estou largando do serviço, tanto pela minha cara de cansaço quanto pelo estado da minha vestimenta, mas não há muito que fazer quanto a isso, moro longe do meu trabalho, o transporte não ajuda, o país é mega tropical, e por conta de todos esses fatores eu nunca consigo chegar ao trabalho do jeito que saí de casa.
Chegando à portaria eu dou um bom dia para o Garrincha, um porteiro muito gente boa, que não entende nada de bola, mas devido as suas pernas tortas, eu passei a chamá-lo assim, e ele até gosta.
Dentro do elevador todos parecem inimigos, ninguém se olha e ninguém se fala, quando eu cumprimento alguém, chego a ser olhado com estranheza, infelizmente nos dias de hoje ser educado virou coisa de outro planeta, e as vezes eu me sinto realmente um extra terrestre que caiu de para quedas nesse mundinho aqui.
Eu trabalho em um escritório de advocacia, faço de tudo, não chego nem a ter uma função específica, rotina é uma coisa que não existe no meu cotidiano de trabalho. Na carteira, os patrões assinaram como auxiliar administrativo, uma nomenclatura muito usada para o cidadão fazer de tudo e depois não tentar entrar na justiça contra a empresa por desvio de função, esses empregadores são muito espertos, mas enfim. Eu faço serviços de rua, entrego documentos para clientes, pego processos no Fórum, faço até café naquela porra, e por aí vai.
E quando entro no escritório já dou de cara com o Seu Barboza, que eu apelidei de Catatau, mas eu nunca ousei chamá-lo assim, existem certos apelidos que eu invento que ficam somente para mim, e esse é um deles, só uso nos meus momentos íntimos em que estou enfurecido com o Seu Barboza.
O meu patrão é um tipo bem peculiar, é daquele português clássico, baixinho, barrigudo e ostenta um pomposo bigode, o cara ainda usa suspensório, ninguém mais usa essa porcaria, mas ele faz questão, a invenção do cinto ainda não é do seu conhecimento. E uma vez fitando o Seu Barboza com atenção, eu vi que ele parecia muito com o Catatau, principalmente por causa do restinho de cabelo que ele usa de lado na parte frontal da cabeça, formando um excêntrico topete, coisa horrorosa de se ver, mas eu sou obrigado a ver praticamente todo dia. Ah, as orelhas do sujeito também são protuberantes.
E foi justamente essa figura que me recebeu na porta, mas ele faz isso todo dia, tem implicância comigo e fica vigiando pra ver se eu chego atrasado, mas eu não dou esse mole pra ele; mas só depois da minha chegada é que ele começa a agilizar os seus afazeres.
- Bom dia Vítor. – fala o Seu Barboza.
- Bom dia. – respondo de forma bem desanimada.
- Segunda feira você sabe como é né, espero que esteja preparado que hoje tem bastante coisa.
Como resposta eu apenas balancei com a cabeça fazendo um gesto de afirmativo e murmurei entre os dentes: "Eu sei Catatau desgraçado, eu quero é novidade nessa porra. Onde já se viu alguém estar vendendo disposição em plena segunda feira, esse cara não é normal."
- Disse alguma coisa Vítor?
- Não senhor.
Depois dessa resenha eu sento na minha cadeira e espero alguém me passar alguma coisa. Me perdoe se algum advogado estiver lendo isso, mas ô raça! Esses caras não prestam, eu vejo o pouco caso que eles fazem com as coisas e as pessoas, às vezes chegam a perder uma causa por mera displicência, só porque o valor é baixo. Além do fato deles serem mentirosos, manipuladores, e não possuírem o mínimo de escrúpulos; eu vejo isso todo dia, chega a me dar nojo, mas como eu tenho que trabalhar, eu vou aturando esse povo até arrumar algo melhor, na verdade esse é o pensamento da grande classe trabalhadora explorada, ir empurrando com a barriga até pingar algo um pouco menos degradante.
Eis que depois de alguns minutos pedem para eu fazer um serviço na rua, e eu até gosto quando isso acontece, pois eu dou a minha voada básica e ainda fico longe daqueles vermes.
Segunda feira essa cidade parece que fica mais cheia do que o normal, deve ser o povo procurando emprego, eu chego a ver engarrafamento de pedestres atravessando as longas ruas do centro do meu Rio de Janeiro.
O Sol agora está mais impiedoso do que antes, mas não é só ele que está cruel, a concorrência é grande, os guardas já fazem operação logo cedo para recolher as mercadorias dos camelôs, sempre tem um que sai com a mão nas costas, pois o cassetete é perverso, eu nunca entendi o porquê de se tratar um trabalhador dessa maneira, às vezes eu acho que os governantes querem mesmo é que o cidadão de bem vire bandido, pois eles fazem de tudo para isso acontecer.
Quando o sol está muito quente do jeito que está hoje, eu nem gosto de ficar muito na rua, por conta disso eu fiz logo o que tinha que fazer e voltei para o escritório, para tentar desfrutar um pouquinho do ar condicionado, pelo menos até me passarem outra coisa para fazer.
Depois de voltar para o meu habitat artificialmente natural, eu aproveito para beber aquela bendita água, e antes que eu pudesse encher o segundo copo, sou chamado pelo Catatau para comparecer em sua sala.
Ao entrar, o cenário de guerra é sempre o mesmo; calma, não se assuste, estou falando das cenas que estão a passar na TV, é que o meu patrão é simplesmente fissurado por filmes de guerra, ele tem uma televisão com DVD na sua sala só para isso, e o pior é que ele vê sempre os mesmos filmes, mas hoje pelo visto ele lançou um novo, tanto é que eu não resisti e perguntei o nome.
- Filme novo Seu Barboza?
- Que nada, é porque esse é o meu preferido, e eu praticamente não trago para o trabalho, pois ele fica em casa, vejo praticamente todo dia, mas hoje como ele estava na minha mala, aproveitei e coloquei pra ver.
- Humm, sei, mas é antigo né?
- Sim, ele é dos anos 80, e até hoje é o meu filme preferido, aliás, foi este clássico que me fez ficar fascinado por filmes de guerra.
- Esse eu nunca vi não, qual o nome?
- O nome desse filme é "Bom dia, Vietnã". Sabe Vítor, a vida é uma guerra, só que nós temos que tentar ver essa batalha de uma forma mais animadora, tentar ver graça até na tragédia, e esse filme mostra bem isso.
O Catatau ficou filosofando a respeito da vida ser uma guerra durantes bons minutos, e ele até falou coisas bem interessantes, e eu confesso que não conhecia esse lado dele, e achei até legal, o cara se mostrou mais humano, coisa que ele nem aparentava ser.
Após o papo cabeça, ele pediu para que eu fizesse um último serviço na rua, e falou que eu poderia ir embora de lá mesmo. Eu achei estranho aquilo, ainda faltavam quatro horas para o fim do meu expediente, e ser liberado cedo, ainda mais em uma segunda feira é coisa nova para mim, mas eu acho que foi o efeito do filme, o Catatau ficou visivelmente mexido com aquela história que ele já havia visto inúmeras vezes.
Depois de fazer o tal trabalho, fui para casa, minha mãe até se assustou.
- Que houve meu filho! Chegando uma hora dessas em casa, não me diga que foi mandado embora? – perguntou assustada.
- Que nada mãe, se acalma, o chefe estava de bom humor, falou que não tinha mais nada para fazer e me liberou, eu também achei estranho, mas está tudo bem.
- Menos mal meu filho, aproveita e come logo, ta tudo quentinho.
Hoje em dia todo mundo vive assombrado pelo fantasma do desemprego, e minha mãe não foge da regra, como só somos nós em casa, e eu ajudo bastante com as coisas, ela fica com medo deu ficar sem emprego, pois a aposentadoria dela certamente não daria conta de nós dois.
Depois de comer alguma coisa, aproveitei para ficar um pouco na rua conversando com alguns amigos, que por conta do tempo corrido eu já não falava há um tempo.
Quando a noite enfim caiu, já era hora deu estar no pré-vestibular, mas como depois que voltei da rua deitei para dar uma descansada, eu fui direto, só acordei de madrugada para ir ao banheiro, cansaço acumulado é fogo. O meu normal é chegar dentro de casa e praticamente sair direto, mas hoje devido à quebra da minha rotina eu fui tirar a bendita da soneca e peguei o embalo do sono. Como era quase três da manhã e já não havia mais o que fazer mesmo, aproveitei e voltei a dormir.
Às cinco e meia da manhã o Galo Preto me acordou, esse é o apelido do meu despertador, um dos meus melhores amigos, pois ele nunca falhou comigo.
Como eu estava bem descansado, fui trabalhar até um pouco mais animado, no caminho para pegar o lotadão eu fiquei refletindo sobre as coisas que o Catatau havia falado, e eu confesso que nunca tinha parado para observar o mundo como se ele fosse realmente uma guerra, e ao olhar as pessoas se espremendo dentro de um ônibus, estressadas já de manhã, e com cara de poucos amigos eu tentei tirar alguma coisa produtiva daquilo tudo.
         Ao entrar no lotadão, eu me aconcheguei no meu banco, e diante do cenário que me cercava, eu fiz uma coisa que agora faço todos os dias. Eu coloquei a cabeça para fora da janela e gritei:
         - Bom dia, Vietnãããããããããã! 


Um conto escrito em homenagem a todos os guerreiros desse país, que encaram suas vidas como uma guerra e vencem uma batlha a cada dia.

Bruno Rico.