Morro da Providência - RJ. São oito e meia da manhã em um
feriado de primeiro de abril. No céu o clima está limpo, mas no morro o tempo
fechou, e fechou pra valer.
Tudo seguia na mais santa paz até o momento do corpo do
cara mais querido do morro ficar estirado no chão, cravejado de balas, quatro
para ser mais exato, e todas pelas costas.
O morro todo bradava em uma só voz: Mataram o Coca cola!
Mataram o Coca cola!
O
silêncio daquela manhã de feriado era rasgado pelos gritos das mulheres
histéricas, que fizeram questão de acordar o morro todo, afinal, todos
precisavam saber do ocorrido. Ato de covardia, tiros pelas costas, mentiras
sendo noticiadas na mídia, ou seja, a comunidade precisava agir.
Coca cola era o apelido de Cleyton Júnior de Souza,
morador do morro da Providência desde que se entendia por gente. Filho de mãe
solteira, e com mais dois irmãos menores em casa, com 12 de idade ele se viu
obrigado a trabalhar, e seu primeiro emprego foi como ajudante de caminhão, era
um caminhão que entregava bebidas pelo bairro, e como Cleyton vivia com o seu
carrinho vermelho da Coca-Cola pra cima e pra baixo, deram-lhe o tal apelido.
Anos depois ele saiu deste emprego, mas o carrinho continuou lhe acompanhando,
pois quando começou a trabalhar de entregador em uma loja de construção, que
ficava no morro mesmo, era o carrinho vermelho – agora desbotado – que lhe
fazia companhia na entrega das mercadorias, e aí não teve jeito, o apelido Coca
cola se consolidou de vez, e até que ele gostava, costumava dizer para as
meninas do morro que era pretinho e gostosinho que nem o refrigerante, ora o
papo colava, ora o que colava era um soco bem dado no meio da cara, dado por
algum namorado, ou pai ciumento.
Coca cola não tinha vícios, era o típico exemplo da flor
que nasce no meio do concreto, seus amigos sempre perguntavam como ele
conseguia viver sem beber e sem fumar, e categoricamente ele sempre respondia,
com um sorriso nos lábios: “Já tenho tudo que preciso para ser feliz.”
De fato ele era um cara que se satisfazia com o básico,
além de conseguir ver beleza nas coisas simples (um dom de poucos), e isso
realmente o fazia um ser humano bem feliz. Mas o que o motivava a não usar
drogas, não beber, e muito menos pegar em armas, estava dentro de sua casa, em
hipótese alguma ele ousaria desapontar a mãe e os irmãos. Coca cola era daquele
tipo de sujeito que venerava a mãe de tal forma, que fazia absolutamente de
tudo para que ela tivesse muito orgulho dele, inclusive, muitas foram as vezes
que ele deixou de fazer algo que gostava, mas que por algum motivo, não era
visto com bons olhos pela mãe.
E o que mais a mãe de Coca cola tinha por ele era
orgulho, daqueles que não cabiam no peito quando falava do filho para os
outros, e era isso que ele não queria perder, além do que, sua postura e suas
atitudes serviam de exemplo para os irmãos, que viviam se dedicando aos estudos,
seguidos pelos olhos atentos do irmão mais velho, que não deixava nenhum deles
trabalhar, justamente para que dedicassem o tempo somente para os livros, e
para que não ficassem cansados com serviços externos; e sobre isso ele sempre
dizia: “Quero que meus irmãos consigam o que eu não consegui, se for preciso
arrumo até três empregos para que eles não precisem trabalhar.”
E como não ter orgulho de um filho, ou irmão assim?
Coca cola não era venerado apenas pela mãe e pelos irmãos
não, tinha muitos amigos no morro, e todos possuíam um grande apreço por ele,
até os bandidos o respeitavam bastante. O cara era um exemplo na comunidade,
fazia o papel de pai de família dentro de casa, era daqueles amigos que dava a
última moeda do bolso só para que o vizinho mais pobre pudesse ter um pão pela
manhã. Quando estava com os amigos, sempre pensava mais nos outros do que nele
próprio, até porque a felicidade do outro também lhe fazia feliz, era um
verdadeiro irmãozão com todo mundo, difícil achar alguém na Providência que
tivesse algo de mau a falar do cara, aliás, tinham os pais e namorados
ciumentos das meninas que Coca cola cortejava – como já citei anteriormente -,
mas até esses falavam: “Pô, esse cara é mulherengo, mas é gente boa.”
No dia de sua morte, Coca cola havia saído de sua casa
por volta das sete horas da manhã, para comprar pão e leite no mercadinho, como
fazia sempre, só que nesse dia a polícia resolveu fazer uma operação às pressas
no local, exatamente naquele horário, pois um informante havia lhes dito que o
chefão do movimento estava presente, e andava tranquilamente pelas vielas do
morro com uma bermuda azul e uma camisa vermelha. O dono do morro era o Sassá,
que dificilmente dava as caras na Providência, justamente por ser muito visado
pela polícia, só que naquele dia, por algum motivo específico, ele estava
presente no morro logo pela manhã, e de fato usava uma bermuda azul e uma
camisa vermelha, mas o grande problema é que o pobre do Coca cola também havia
saído de casa com o mesmo traje, e daí o pior aconteceu.
Ao ser avistado por três policiais em uma viela estreita
do morro, Coca cola não teve escapatória, nem tempo para nada, até porque
morreu sem saber o porquê da sua morte. O alvo estava dentro do perfil do dono
do morro, era alto, negro, usava bermuda azul e camisa vermelha, que ganhou um
avermelhado bem mais funesto depois que quatro tiros lhe atingiram pelas
costas. Os policiais não tiveram dúvidas, não gritaram, não falaram o famoso
“perdeu”, não fizeram nada disso, apenas atiraram. O “bandido” estava na mira,
andando sozinho tranquilamente, era um cara procurado há muito tempo, não
restava mais nada a fazer se não apertar o gatilho e depois ser condecorado no
batalhão.
O corpo de Coca cola caiu no chão de bruços, os policiais
que ostentavam um orgulhoso sorriso no rosto, caminharam para desvirá-lo... E
eis que veio a surpresa.
O sorriso cintilante foi embora da face dos três, que
fizeram expressão de preocupados, não sabiam o que fazer, pensaram em ligar
para o comandante do batalhão, mas ficaram com medo, pensaram em dizer que os
tiros haviam vindo da arma de traficantes em uma provável troca de tiros, mas
viram que daria problema, tanto pela perícia da balística, quanto pelo horário,
pois dificilmente seria encontrado algum traficante armado naquele momento no
morro. Eles precisavam pensar rápido, não tinham tempo para grandes planos, daí
tiveram a ideia de dizer que os tiros foram frutos de uma legítima defesa que
aconteceu por conta do bandido ter esboçado sacar uma arma, e este bandido seria
o Coca cola. Não era algo genial, mas era a desculpa mais viável para o
momento, até porque era a mais usada nesses casos, e nunca tinha dado grandes
problemas pra ninguém.
A merda já estava feita, e daqui a pouco iria começar a
feder, e antes que isso acontecesse eles precisavam tomar uma decisão, que não
foi tomada em comum acordo, pois ao contrário dos outros dois, um policial
reconheceu o Coca cola, sabia que era um cara trabalhador e querido no morro, e
por isso ficou muito preocupado, mas o nervosismo não deixou que ele
argumentasse muito, e mesmo indo contra a ideia dos colegas, ele acabou
aceitando, mas ficou angustiado, pois sabia que aquela história não iria acabar
bem.
Depois dos tiros dados, Dona Lurdes acordou assustada,
com o coração apertado, parecia ter sentido no próprio peito as balas que
haviam alvejado o seu filho tão querido, que certamente estaria na rua naquele
exato momento, rumo ao mercadinho. E como o barulho de tiro vinha de perto,
instantaneamente a preocupação bateu, o coração de mãe falou mais alto, e do
jeito que estava, descalça, apenas com uma camisola comprida, ela bateu em
retirada para ver o que tinha acontecido.
Quando Dona Lurdes chegou ao local onde a tragédia havia
acontecido, o corpo de seu filho já estava coberto por um pano, e não estava
mais caído de costas, pois os assassinos haviam virado o corpo para tentar
minimizar a covardia.
Logo que Dona Lurdes avistou um montinho amontoado, ela
já sabia que se tratava de algum morto, bastava saber quem, pois montinho de
gente fazendo roda em morro sempre é um corpo no chão. Quando chegou perto da
rodinha, os vizinhos lhe olhavam com tristeza, e antes que alguém dissesse
algo, ela fitou na única parte em que o pano não cobria, que eram os pés, e por
ali ela reconheceu o seu primogênito; a pobre não conseguiu dizer nada, apenas
colocou a mão no peito e caiu desmaiada no chão.
Alguns minutos depois chegaram ao local os irmãos de Coca
cola, Jonathan e Tarcísio, respectivamente com 14 e 16 anos. Os garotos estavam
atordoados, a comunidade já gritava por justiça, o corpo do ídolo estava morto
no chão, a mãe estava no hospital, sabe se lá Deus em que condições, era um
cenário terrível, a vida estava obrigando naquele momento que eles tivesses uma
força que jamais imaginavam ter, até porque a força deles vinha do irmão, agora
morto, logo ali, a dois metros de distância.
Em poucos minutos o morro encheu de polícia, o comandante
do batalhão da área, já sabendo de todo o ocorrido, pediu para que o corpo
fosse recolhido rapidamente para evitar maiores problemas, só que a comunidade
toda já estava sabendo da covardia, alguns chegaram até a agredir alguns
policiais, tamanha era a revolta.
Todos no morro conheciam o Coca cola, o cara simpático
que já havia feito entrega de material de construção em quase todos os barracos
da Providência, portanto todos sabiam que ele era um menino trabalhador, e
justamente por isso que o morro todo
ficou ainda mais revoltado quando ouviu no rádio a notícia de que a polícia
havia matado um bandido no morro da Providência.
- Gente, gente, estão dizendo no rádio que o Coca cola
era bandido, acabei de ouvir agora. – dizia uma senhora revoltada, no meio da
multidão.
- Pichar um trabalhador de bandido justo no dia do
trabalhador é uma tremenda de uma sacanagem. – disse outro morador, igualmente
revoltado.
Uma tia de Coca cola apareceu querendo saber onde era
essa rádio, pois ela iria até lá para esclarecer esse mal entendido. Mas
enquanto estava em sua casa arrumando as coisas para sair, o jornal da tarde
estava sendo noticiado na TV, e em um determinado momento a apresentadora
disse: “Polícia mata bandido no morro da Providência logo pela manhã.
Acompanhe...”
A pequena matéria falava vagamente da morte de um bandido
chamado Cleyton Júnior de Souza, e que os moradores faziam protestos no local a
pedidos dos traficantes.
Pronto! Aquilo era a gota d’água para a tia de Coca cola
que pretendia ir à rádio falar que estavam manchando o nome do sobrinho
trabalhador, e agora? Ela iria até a televisão também? Não tinha como, por mais
que estivessem denegrindo a imagem do Coca cola, ninguém podia fazer grandes
coisas, eram todos favelados, e o que favelado fala não tem muito crédito na
mídia, além do que, o pobre coitado não trabalhava de carteira assinada, pois
se sua tia estivesse com uma carteira assinada na mão, ela iria ir onde fosse
preciso para esfregar na cara de todos aqueles que estavam dizendo que seu
sobrinho era bandido.
O chefe de polícia ficou sabendo de toda a confusão,
inclusive que Coca cola era realmente um trabalhador, e pediu para que os
principais meios de comunicação da cidade não noticiassem o fato, ou que no
máximo dessem uma nota breve, mas sempre enfatizando que era um bandido que
havia morrido, apenas isso, sem dar grandes detalhes, e como praticamente todos
os veículos de comunicação possuíam o rabo preso, ou dependiam de favores do
Governo, seguiram a ordem sem questionar.
No dia seguinte a morte de Coca cola nada se viu nas
bancas de jornal a respeito do ocorrido, a mídia havia simplesmente ignorado
tudo, inclusive os protestos, e os únicos que se importavam e comentavam sobre
o assunto, eram os próprios moradores do morro.
Todos na Providência gritaram aos quatro cantos do mundo
que a morte no morro havia sido uma injustiça, que os policiais atiraram
primeiro para depois perguntar, pois Coca cola era trabalhador; mas era tudo em
vão, eles não conseguiam ter voz, não conseguiam um espaço na TV, rádio, ou jornal,
e aquilo foi revoltando profundamente a todos, principalmente os irmãos
Jonathan e Tarcísio, que além dos inúmeros problemas, ainda estavam com a mãe
internada no hospital.
Dona Lurdes havia sofrido um princípio de infarto, e os
remédios não deixavam que ela chorasse a dor pela perda do filho, a coitada
estava totalmente anestesiada, o caso foi tão grave que ela ficou por
praticamente uma semana sob os cuidados dos médicos.
Quando saiu do hospital, e enfim foi para casa, ainda sob
o efeito de remédios, Dona Lurdes viu um muro branco logo na subida do morro
com os dizeres: “Mataram o nosso mano que fazia o morro mais feliz, e
indiretamente ainda faz, mano Coca cola esteja em paz”. A frase fazia alusão a
uma música de rap, que era a preferida de Coca cola.
O tempo foi passando e as coisas na casa de Dona Lurdes
nunca mais foram as mesmas, e nem poderiam ser, a dor e revolta eram tamanhas.
E como se já não bastassem os problemas, os irmãos de Coca cola decidiram
entrar para a bandidagem do morro, diziam que iam matar polícia, que iam vingar
a morte do irmão que havia morrido com apenas 19 anos de idade. A mãe não teve
forças para impedir, e infelizmente o sonho de ter dois filhos estudados e
encaminhados na vida, caiu por terra.
Na bandidagem os irmãos ainda conseguiram ficar algum
tempo, mas um bandido mais experiente sempre dizia que quando o ser humano age
por instinto de raiva, as coisas sempre acontecem da pior forma, e não teve
outra. Certo dia, Jonathan, o mais novo dos irmãos, conseguiu enfim acertar um
policial, que morreu no hospital, ao saber do ocorrido ele fez festa, comemorou
a noite toda, dizia ter matado mais um corrupto, mas por ironia do destino ele
havia tirado a vida do único policial 100% honesto que havia no batalhão da
área.
No dia seguinte o morro encheu de polícia, os bandidos já
sabiam que isso iria acontecer e ficaram entocados por uma semana, mas uma hora
tiveram que sair, e quando saíram o alvo foi o matador de polícia, que no fundo
já sabia que não ficaria vivo, pois quem mata polícia no Rio de Janeiro,
dificilmente tem outro fim, se não a vala, e assim foi o fim do jovem Jonathan,
morto com uma saraivada de tiros, sem dó nem piedade, um recado bem dado pela
polícia do local.
Tarcísio ficou ainda mais sem rumo, se envolveu com drogas,
continuou no crime para manter o vício, e tempos mais tarde foi preso.
A essa altura do campeonato, Dona Lurdes já havia
arrumado refúgio na religião, se agarrou com o pastor, vivia na igreja dia sim,
dia não, dava tanto dinheiro para a igreja que certo dia chegou a ficar sem
alimento dentro de casa, mas os vizinhos nunca deixaram que ela passasse fome,
na verdade todos entendiam o fardo de uma mãe que estava com a vida destruída,
vida esta que outrora era tão prazerosa e feliz, apesar dos pesares. Mas a
morte de dois filhos, e a prisão de outro, era demais para ela, na verdade
seria demais para qualquer mãe, e ela não conseguiu arrumar forças em lugar
nenhum, nem na igreja, até porque ela havia virado evangélica para que Deus
atendesse um único pedido, Dona Lurdes queria morrer, toda vez que ia à igreja
ela pedia por isso, e quando ia deitar-se para dormir fazia uma oração pedindo
para não mais acordar. Mas Deus não está atendendo as suas preces, pois ela
segue vivendo, ou melhor, sobrevivendo, e sempre que acorda - frustrada por
ainda estar viva - ela fita a foto de Coca cola, que está em cima de uma cômoda
perto da cama, e pensa como aquelas quatro balas serviram para acabar com
quatro vidas, pois quando atiraram no Coca cola, levaram a vida dele, dos irmãos,
e da mãe, que segue com sua dor no peito rotineira, como se uma bala estivesse
literalmente alojada em seu coração.
Bruno Rico.
1 comentários:
NA MORAL FIQUEI EMOCIONADO E AO MESMO TEMPO REVOLTADO.. CADA CENA DESTA QUE FICO SABENDO ME VEM NA MENTE A IDEOLOGIA DO CARLOS MARIGHELLA "DE QUE NÃO SE FAZ REVOLUÇÃO SEM UM FURA NA MÃO".. NAO NA DE MATAR POLICIA, E SIM DE LUTAR PELOS NOSSOS DIREITOS.
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