Chocada com mais um derramamento de sangue no Morro dos
Macacos, lugar onde mora em Vila Isabel, Camélia Rosa limpa os vidros de uma
mesa de canto enquanto sua patroa Gabriela degusta de tal carnificina, sentada
em frente à televisão.
-
Nossa Senhora! Esse Rio de Janeiro cada dia está pior, ontem à noite mal
consegui dormir com tanto barulho de tiro, nesse ponto a minha terra é um
sossego que só.
-
Qual é o nome da sua terra mesmo, Camélia? – pergunta a patroa, com os olhos
vidrados na TV.
-
É Girau do Ponciano, a dona não conhece não, fica no agreste de Alagoas.
-
Hum, sei. É não conheço mesmo não.
Camélia
Rosa Ferreira dos Santos tinha pouco mais de um ano no Rio Janeiro, mas estava
longe de se acostumar com a cidade, que ela reclamava ser muito corrida e
violenta, e essas características passavam longe do cotidiano da sua cidade
natal, cidade esta que ela sentia uma saudade que mal cabia dentro do peito.
Camélia
era empregada doméstica, e trabalhava em duas casas diferentes. De segunda a
sexta ela marcava presença em Ipanema, na casa da dona Gabriela, uma dondoca de
uns 24 anos que era esposa de um renomado empresário do ramo imobiliário
carioca. Aos sábados e domingos Camélia fazia faxina na casa da dona Zilá, uma
simpática senhora de 68 anos que morava sozinha em um apartamento de
Copacabana.
Bem,
diante de tal escala, onde ficava a folga da guerreira Camélia? Pois é, ela não
tinha folga, a jornada de trabalho sempre foi de segunda a segunda para mandar
dinheiro para seus filhos, que moravam em Girau do Ponciano.
Camélia
era uma moça muito sonhadora, mas ela não gostava de compartilhar nada com
ninguém, era muito fechada e praticamente não tinha amigos no Rio de Janeiro, a
pessoa que ela mais gostava de conversar era a patroa Zilá, que sempre lhe
ouvia com bastante atenção. Trocar a escala para ver a cara da dona Gabriela
somente aos finais de semana, e de segunda a sexta bater bons papos com a dona
Zilá, certamente faria Camélia trabalhar bem mais feliz, mas infelizmente isso
não era possível, o apartamento da dondoca de Ipanema era gigantesco e
necessitava realmente de cinco dias de serviço; enquanto o aposento de dona
Zilá era modesto, porém cheio de quinquilharias empoeiradas, coisa de velho,
que gosta de guardar tudo dentro de casa.
Os
vinte e oito anos de idade já haviam dado maturidade de uma velha senhora, para
a ainda jovem Camélia, que costumava dizer que a vida havia lhe envelhecido
demais, tamanhos os acontecimentos que regeram seu destino. Talvez por conta
disso tenha nascido aafinidade com a patroa Zilá, pois uma era anciã de corpo,
e outra de alma.
Como
todo bom nordestino que busca uma vida melhor – pelo menos financeiramente - Camélia
fez o caminho de muitos, largou a cidade natal com família e tudo para tentar
um trabalho digno na cidade grande. Na terrinha ficaram sua mãe Iolanda e seus três
filhos, Débora de dez anos, Dara de sete, e o pequeno Darlan de quatro anos, seu
xodó, este, aliás, era o principal responsável pelas lágrimas que
rotineiramente escorriam pela face de Camélia Rosa, que tinha um sonho
misterioso que possuía ligação direta com o seu filho caçula, que também
chorava horrores de saudades da mãe. Sabe como é, filho homem, ainda mais
caçula, é colado demais com a mãe.
Os
três filhos de Camélia moravam com a avó Iolanda, e por questões financeiras a
pobre empregada doméstica não conseguia falar com sua família com a frequência
que gostaria, pois as ligações sempre pesavam muito no bolso.
Sempre
que descia o seu Morro dos Macacos logo cedo para trabalhar, Camélia parava em
frente a uma banca de jornal e por lá perdia alguns minutos tentando decifrar
as notícias através das figuras. Ela abaixava, levantava, olhava a capa de
lado, de bem perto, de longe, e com sua interpretação criativa ela supunha o
que determinada notícia queria dizer, depois no jornal da tarde ela sempre
tirava a prova se a sua imaginação havia criado uma mentira ou uma verdade.
Mas
como pode uma pessoa ver a capa de um jornal e interpretar as figuras sem ler?
Pois é, Camélia Rosa era analfabeta, mas quase ninguém sabia, ela tinha muita
vergonha disso, afinal, quem teria orgulho? Nos trabalhos ela sempre dava um
jeito para disfarçar o seu analfabetismo, quando a dona Gabriela lhe pedia algo
que fosse necessário o uso da leitura, ela sempre pedia ajuda da cozinheira da
casa, que prontamente decifrava as palavras que para Camélia pareciam enigmas.
Na
casa da dona Zilá raramente o uso da leitura ou da escrita eram necessários, e
quando por ventura isso acontecia Camélia usava da criatividade para se safar,
mas em um determinado dia as coisas não saíram como ela esperava.
-
Camélia minha filha, pegue pelo amor de Deus o meu remédio na estante do meu
quarto, estou passando muito mal.
-
Sim dona, mas qual é o remédio, tem uma porção lá. – disse Camélia, muito
nervosa.
-
O nome é Cardizem - disse dona Zilá, já deitada no chão.
Sem
saber o que fazer, Camélia tratou de pegar todos os remédios que estavam na
estante, colocou dentro de um cesto e levou para sua patroa que já estava quase
desfalecendo no chão.
-
É este com uma tarja verde no meio, é este. – disse dona Zilá, apontando para o
medicamento.
Agora
já sabendo qual era o medicamento correto, Camélia imediatamente deu o remédio
para a sua patroa, que depois de alguns minutos já estava bem melhor.
Muito
nervosa por quase ter visto sua patroa morrer por conta da sua demora em achar
o medicamento, Camélia tratou de pedir mil desculpas para dona Zilá, que logo
amenizou a situação.
-
Fique calma minha querida, o importante é que eu estou bem.
-
Me desculpe dona Zilá, fiquei nervosa e não consegui achar o remédio.
-
Minha querida, não precisa mentir para mim, me diga uma coisa, você sabe ler?
Depois
de algum tempo em silêncio, e com a cabeça baixa, demonstrando muita vergonha,
Camélia respondeu:
-
Sei não, senhora.
Depois
dessas três palavras, Camélia tratou de cair no choro, mas daqueles de soluçar
mesmo.
No
mesmo instante, dona Zilá tratou de acalmá-la e disse que sempre suspeitou do
analfabetismo da funcionária, e que depois do ocorrido com o remédio ela só
comprovou a sua suspeita.
Por
ironia do destino a patroa Zilá era uma professora aposentada, e ao ver o drama
de Camélia, ela prontamente ofereceu ajuda em sua alfabetização.
-
Mas dona Zilá, eu irei dar trabalho, não quero atrapalhar a senhora.
-
De maneira alguma Camélia, muito pelo contrário, há anos que eu não leciono, e
te ensinar a ler e a escrever será muito prazeroso para mim, pode acreditar.
Depois
de uma breve conversa ficou tudo acertado entre as duas, e percebendo a
ansiedade de Camélia Rosa, dona Zilá tratou de começar com sua mais nova aluna
imediatamente.
No
início Camélia só estudava nos finais de semana em que fazia faxina na casa da
patroa agora professora, mas ela tinha um sonho, e esse sonho precisava ser
realizado o mais rápido possível, e por conta disso, ela tratou de intensificar
os estudos, e passou a frequentar a casa da patroa Zilá todos os dias. Durante
a semana as coisas ficaram mais corridas do que já eram, pois Camélia ia do
Morro dos Macacos para Ipanema, de Ipanema para Copacabana, e só chegava
novamente nos Morros dos Macacos tarde da noite, sendo que logo pela manhã ela
já teria que estar de pépara marcar presença na casa da dona Gabriela em Ipanema.
Ou seja, tudo muito corrido. Sem folgas e com um ritmo de estudos bem puxado
Camélia às vezes chegava a passar mal quando fazia uma faxina que lhe exigisse
muito, mas o sonho que ela tinha não a deixava esmorecer em momento nenhum.
Para
espanto de dona Zilá, depois de alguns meses de dedicação intensiva aos
estudos, Camélia já apresentava grandes evoluções, e até conseguia ler algumas
frases. Mas o problema ainda estava na escrita, a própria professora não sabia
por que sua aluna queria aprender a escrever tão rapidamente, sendo que essa
tarefa exigia tempo, mas Camélia queria para já, se possível para ontem.
Passado
pouco mais de um ano, Camélia seguia na busca incessante por aprender a
escrever, na verdade ela já estava até escrevendo algumas coisas, mas a sua
caligrafia ainda estava ruim, e ela precisou aprimorar esse aspecto um pouco
mais. Camélia sempre foi perfeccionista nas coisas que fazia, a respeito disso,
ela sempre dizia para sua patroa:
-
Dona Zilá, se minha faxina é impecável, também quero que a minha escrita seja.
E
eis que um dia, subindo o seu Morro dos Macacos, depois de longas horas de
trabalho e estudo, Camélia se achou apta para enfim realizar seu sonho. Ela deitou-se
em sua cama, pegou um caderno e começou a escrever. Depois de preencher três
folhas, com frente e verso, e ver que tinha finalmente conseguido realizar o
seu objetivo, uma lágrima marcou a última folha, e esta lágrima simbolizou um
ponto final.
No
dia seguinte, logo pela manhã, Camélia Rosa mudou o seu trajeto rotineiro, e
foi direto para uma agência dos Correios. Lá ela pegou suas folhas, colocou
dentro de um envelope e endereçou sua carta para Girau do Ponciano – Alagoas.
Depois
de sair da agência ela foi em direção a um orelhão, e totalmente emocionada
ligou para sua família:
-
Alô, mãe, me deixe falar com o Darlan, é urgente.
-
Tá bom minha filha, vou acordar ele.
Depois
de alguns segundos...
-
Oi meu filho, mamãe conseguiu realizar aquele desejo que você sempre pedia quando
falava comigo, daqui uns dias a carta da mãe vai tá chegando aí, do jeito que
você sempre me pediu.
Depois
de desligar o telefone, Camélia Rosa passou a caminhar na rua de uma forma
diferente; a cabeça estava totalmente erguida, o olhar era altivo, e o sorriso
que mal cabia no rosto denunciava claramente que ela havia acabado de realizar
um sonho, e dos grandes.
Bruno
Rico.
1 comentários:
Lindo conto Bruno. Lembrei muito de uma pessoa querida minha que não sabe escrever... acho que é bem isso que ela sentiria. Beijão
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