Celino é mais um típico cidadão comum
brasileiro. Pele negra, dois filhos, esposa dedicada, contas acumuladas, um
carro popular na garagem, casa na beira da favela, tem um curso técnico que lhe
garante um emprego mediano, e uns bicos nos finais de semana complementam a sua
renda, afinal de contas, criança gasta muito, e os seus dois filhos fazem com
que ele se lembre disso todos os dias.
Celino trabalha fazendo reparos elétricos, e
neste último domingo ele foi à casa de uma cliente particular para fazer alguns
serviços. Tudo muito bom, tudo muito bem, dinheiro na mão, são sete e meia da
noite, se ele correr ainda consegue chegar em casa para se reunir com a
família, pedir uma pizza e assistir ao fantástico. E foi isso que ele tentou
fazer.
Tudo concluído, ele entrou no seu popular,
ligou o rádio para ouvir um pagodinho, e saiu de Marechal Hermes rumo à Pavuna,
bairro onde reside.
Domingo tranquilo, sem trânsito; não haveria
de demorar, logo estaria na companhia de seus entes queridos, sentado em seu
sofá que acabara de comprar em um mega saldão, para enfim desfrutar do
entretenimento da revista eletrônica da TV brasileira.
Eis que de repente...
- Encosta, ladrão!
Fardas alinhadas, faces que externavam ódio e
um fuzil apontado para a cabeça. Em seus 28 anos de vida, Celino nunca havia
passado por situação parecida, por isso mesmo ficou estático, sem reação
alguma, preferiu não se mover, até ser arrancado do banco de seu carro e jogado
no meio da rua; assim, sem o menor jeito, com total truculência mesmo, chegou
até a ralar o cotovelo.
- E então Corrêa, é esse aí o homem, o tal
ladrão de carro que está barbarizando a zona norte?
- É ele sim Pires, é ele sim!
- Beleza, vou deixar o comandante em QAP.
A blitz estava sendo feita em uma rua totalmente
deserta e sem iluminação, eram apenas dois policiais e ninguém como testemunha.
Enquanto isso, Celino estava no chão, com as mãos na cabeça já achando que iria
morrer como fruto de mais um mal entendido. Naquele momento, ele só pensava nos
filhos e na esposa.
Tomado por um impulso divino, Celino se fez
forte e tentou falar, mas não obteve sucesso, um chute na barriga veio como
cala boca. Ele ainda tentou respirar fundo, tomar força para argumentar que não
era o tal que estavam falando no rádio com o comandante, mas infelizmente não
conseguiu.
Em meio a todo aquele clima de tensão, os
policiais soltavam risos sádicos pelo telefone, até que um deles disse:
- É isso mesmo, o patrão mandou passar, esse
aí não vai roubar mais ninguém aqui na área, afinal de contas, bandido bom é
bandido morto!
Em poucos segundos Celino havia virado uma
peneira humana, o assassinato ocorreu ali mesmo, na rua, com ele deitado com o
rosto virado para o chão, todos os tiros dados pelas costas, foi execução
mesmo, para que bom entendedor entendesse o recado. A missão estava cumprida.
Um domingão daquele, só restava reunir as
Marias UPPs e partir para fechar um camarote no pagode, afinal de contas,
aquilo precisava de comemoração, baldes e mais baldes de cerveja com energético
seriam comprados em homenagem a morte de Celino, que para os policiais não era
Celino, e sim Valdir, conhecido popularmente como Macaco, um bandidão que há
muito tempo era procurado na área.
Tudo ia muito bem, enquanto o sangue se
alastrava no chão, o sorriso dos assassinos também se alastrava na face, o
sentimento era de satisfação extrema, talvez rendesse até promoção. Só que
quando um dos policiais foi mexer no corpo, e enfim procurar os documentos do
morto, ele viu que Macaco era Celino. Na hora, o olho do bicho arregalou tanto
que quase saiu da caixa, o parceiro, vendo tal reação foi ver o que era, e ao
confirmarem a cagada, ambos ficaram se olhando, como que dissessem: “E agora, o
que faremos?”
- Liga pro comandante, agora!
Pelo rádio, o comandante, que estava em casa,
assistindo a um filme, nem chegou a se preocupar muito, conseguiu até
tranquilizar um pouco os seus subordinados:
- Ora, agora já está feito. Fiquem calmos,
sem alteração para que tudo possa ser solucionado da forma correta.
- Mas então chefe, o que fazemos?
- O de sempre! Ou vocês não lembram que já
fizeram esta merda antes? É só fazer a mesma coisa. Mas neste caso é melhor
dizer que foi assalto, esse cara deve ser trabalhador e não fica bem colocar
arma na mão dele pra dizer que foi troca de tiro, vai dar merda na televisão,
sabe como é o tal dos Direitos Humanos, né, vão cair em cima, dizer que era pra
ter prendido e não matado. Forja um assalto aí, dá tiro no carro, some com as
provas e bola pra frente.
- Mas é só isso mesmo, chefe?
- Sim, por que haveria de ter mais alguma
coisa? Tu quer assumir essa porra? O Corrêa vai assumir? Vocês querem
esculhambar a nossa corporação? Então pronto, porra! Foi assalto, esse bairro é
violento mesmo. Mas agora vou desligar, to ocupado aqui. E vocês não me façam
besteira e saiam logo daí, mais tarde eu ligo.
- Que merda, hein Corrêa. Diferente das
outras vezes, eu to com mau pressentimento quanto esse lance aí, o cara está
cheio de ferramenta dentro do carro, era trabalhador, pai de família, olha a
foto das crianças na carteira, demos mole.
- Pois é Pires, nós também somos, e agora já
era, temos que pensar na nossa família também.
- Porra, mas tu também é foda, hein, foi
confirmar que era o cara!
- Ah caralho! Esses pretos são todos iguais,
ainda mais a noite, foi no impulso, jurei que era, mas não era. A gente está na
febre do Macaco faz mó tempão, e o defunto aí é a cara dele, até o porte é o
mesmo.
- Pois é, parece até piada, mas esses macacos
são todos iguais mesmo.
Enquanto Celino virava Macaco nas mãos dos
seus algozes, sua família estava em casa, esperando pelo pai e pelo marido que
nunca mais chegaria.
Seu nome completo era Celino Silva, apenas
isso, pois foi criado sem pai, o Silva era só da mãe. Celino certamente entrará
para a estatística como apenas mais um Silva que a estrela não brilha.
Pois é, NÃO SOMOS TODOS MACACOS; ou melhor,
aos olhos de alguns, somos sim, TODOS MACACOS.
Bruno Rico.