A casa preta.






A casa branca, com manchas escuras, ficava na esquina da Flor de Liz com a Libertários. Era a residência mais pobre de um bairro que sempre foi nobre, habitado por gente esnobe que tinha horror a pobre.
            Os vizinhos apelidaram tal residência de "a casa preta", e diziam que ela manchava o bairro.
Januário era o homem da casa manchada, com ele moravam filhos e esposa, e todos tinham a cor da noite.
Certo dia injuriado com o apelido dado ao seu habitat, ele comprou uma lata de tinta branca e pintou toda a casa, ao final do trabalho ele disse para sua esposa:
- Margarida, agora eu quero ver esses nojentos ficarem chamando a nossa residência de casa preta.
No dia seguinte, logo pela manhã, Januário foi dar um passeio com sua esposa com nome de flor, e antes que ouvisse o primeiro piar de um passarinho, vozes ferozes desabrocharam:

- Olha lá gente, pintaram a casa preta.

Na semana seguinte:

- A casa preta agora tá mais bonitinha.

Na mesma semana uma conversa entre dois moradores:

- Você segue reto, e depois que passar a esquina da casa preta é só dobrar a esquerda.

Depois de alguns dias, Januário finalmente percebeu que o apelido de sua casa não havia sido dado por conta das manchas escuras nas paredes.E ao constatar o triste fato, ele proferiu um triste discurso para sua flor:
- É Margarida, não adiantou pintar nossas paredes, e muito menos adiantará pintar nossos corpos, seremos sempre os moradores da casa preta, os negrinhos que mancham o bairro.

Bruno Rico.  

Possessividade!


Cala-te!
Pois estás errada no que dizes.
Meu amor não foi flecha
que lhe acertou em cheio;
meu amor foi faca que lhe cortou ao meio.
Uma parte minha, e a outra também.

Bruno Rico. 

MÚSICAS QUE ME FAZEM POETIZAR #3



Letra:

Descendo a rua da ladeira
Só quem viu,é que pode contar
Cheirando a flor de laranjeira
Sá Marina é vem pra dançar

De saia branca costumeira
Gira o sol, que parou pra olhar
Com seu jeitinho tão faceira
Fez o povo inteiro cantar

Roda pela vida afora
E põe pra fora esta alegria
Dança que amanhece o dia de se cantar
Gira, que essa gente aflita
Se agita e segue no seu passo
Mostra toda a poesia do olhar

Deixando versos na partida
E só cantigas pra se cantar
Naquela tarde de domingo
Fez o povo inteiro chorar

E fez o povo inteiro chorar



O caderno de capa azul.



Era final da Copa do Mundo de 1970, e enquanto a maioria das pessoas se espremia ao redor de um rádio para ouvir o jogo, o jovem Durval se encontrava deitado no seu quarto tentando escrever.
Todo aquele tumulto na sala de sua casa, acabava atrapalhando a concentração do rapaz, que havia se refugiado em seu quarto na busca de colocar no papel os devaneios de sua mente, mas naquele dia estava difícil, e isso o enfurecia profundamente, a poesia presa parecia o asfixiar, ele precisava colocar tudo aquilo para fora urgentemente.
Enquanto lá no México o Pelé socava o ar por ter feito um gol, no interior do Rio de Janeiro o pobre Durval socava o seu caderno por não conseguir poetizar tudo que estava sentindo. Acabou que de fato naquele dia ele não conseguiu escrever nada, até porque depois da conquista da seleção canarinho as ruas ficaram um inferno, e a fuzarca que antes era somente em sua casa, passou a ser no bairro todo. Enquanto todos bebiam e cantavam, o Durval dormia, na esperança de acordar em uma manhã de paz para enfim dar vida a sua tão inquietante poesia.
Este era Durval Oliva, um ser que sempre amou a poesia mais do que a si mesmo, aliás, ele mesmo dizia que as únicas coisas que tinham serventia em seu corpo eram coração, cabeça e mãos. O coração servia para sentir a emoção, a cabeça para filtrar a emoção e as mãos para dar vida a toda esta emoção.
Durval amava tanto a poesia que fazia questão de se apaixonar somente para ter o que escrever quando julgava estar em um momento de baixa inspiração, ele sempre dizia que o combustível para os seus textos era a emoção, e nada melhor do que uma paixão e depois uma desilusão para gerar emoção suficiente para meses de poesia. Pelo menos assim pensava Durval, um homem que adorava mesclar felicidade e sofrimento como ingredientes para um bom suco poético.
Na época da Copa de 70 ele era apenas um garoto, tinha seus 11 de idade e já escrevia como gente grande, os professores o adoravam, enquanto os coleguinhas o odiavam, ele era o menino esquisito que não desgrudava de um caderno de capa azul, enquanto as outras crianças só queriam saber de brincar.
Certo dia, já com 19 anos, Durval decidiu deixar mãe e irmãos para trás e foi tentar a vida na capital do Rio, além de já estar cansado da vida no interior, ele dizia estar precisando de novas inspirações, novas árvores, novos pássaros, novos coloridos, e principalmente novas pessoas.
A mãe preocupada temeu pelo filho, achou que ele iria passar por inúmeras dificuldades, mas até que ele conseguiu se virar.
- Mas Durval meu filho, a vida no Rio né fácil não, você vai passar perrengue lá sozinho.
- Mas mãe, a vida aqui também nunca foi fácil, e eu já passo bastante perrengue por aqui, já é hora deu passar perrengue em outro canto, a senhora não acha não? – respondeu o petulante Durval, que sempre tinha uma resposta para tudo.
E assim foi o poeta, os estudos estavam inacabados, por inúmeras dificuldades que haviam acontecido em sua vida, dinheiro ele não tinha muito, pois a família era pobre, a mãe viúva praticamente sustentava sozinha uma casa com quatro filhos. Diante de tudo isso só lhe restava realmente tentar uma vida melhor, não havia muitas opções para se escolher.
Na adolescência o hábito de escrever havia ficado meio de lado na vida de Durval, não porque ele quisesse, muito pelo contrário, mas o tempo não era mais tão seu amigo como antes. Ter que estudar, trabalhar e fazer as coisas em casa consumia bastante do seu tempo, e geralmente o sono lhe vencia antes mesmo que ele tentasse chegar perto do seu caderno de capa azul. Isso tudo o deixava profundamente frustrado, ele vivia um dilema diário, pois precisava fazer os seus afazeres para viver, mas ao mesmo tempo a sua vida era a poesia. Foi difícil para ele conviver com esse dilema durante tantos anos.
Durval chegou à capital carioca apenas com algumas economias que havia juntando com o dinheiro da tendinha em que trabalhava, era um dinheiro que provavelmente o manteria por uma semana no máximo, e ele acreditava que nesse tempo iria conseguir arrumar um emprego.
No quinto dia na cidade ele conseguiu o bendito do emprego, iria ser vendedor em uma loja de chapéus no centro, e ali ele ficou durante alguns anos.
Depois de algum tempo saído de casa, a mãe de Durval veio a falecer, ela tinha sérios problemas respiratórios, e em um dia de crise acabou falecendo. Esta perda acabou gerando grandes poesias para Durval, mas segundo ele, este era o sofrimento que ele não fazia questão de ter para escrever, e as palavras acabaram saindo com bastante dor, regadas com muitas lágrimas.
Devido esses infortúnios da vida, os irmãos de Durval tiveram que se separar, cada um tentou a vida de um jeito, e um deles, o Edézio, acabou vindo morar na capital com o irmão. Edézio era mais novo que Durval, e era o irmão que mais o admirava, ele adorava ler o bendito do caderno de capa azul, e falava que um dia o seu irmão iria ser um escritor muito conceituado e de grande sucesso.
Morando com seu irmão no centro do Rio de Janeiro, Durval foi levando a vida como podia, nunca conseguiu se amarrar com mulher nenhuma, mas nem por isso deixou de viver diversas paixões, os seus versinhos de improviso sempre tiveram grande valia, ainda mais que naquela época o mundo e as moçoilas eram bem mais românticos do que hoje.
Aos poucos o vendedor de chapéus conseguiu ir aliando os seus afazeres diários – que não eram poucos – com o grande amor de sua vida, nas horas de almoço do trabalho, por exemplo, ele se enfurnava dentro do caderno de capa azul e por lá ficava durante uma hora; uma vez questionado pelo seu chefe o porquê dele não se alimentar na hora do almoço, Durval respondeu que a poesia lhe saciava por completo, inclusive matando a sua fome, já que as palavras lhe enchiam o estômago.
O tempo foi passando, Edézio foi constituir família, enquanto isso Durval foi se solidificando como um solteirão de primeira; não tinha esposa, não queria ter filhos, e havia adotado a boemia como estilo de vida, tantas foram às vezes que ele subiu o morro de Santa Teresa com seu caderno de capa azul em baixo do braço. De tanto frequentar o lugar, acabou se mudando de vez, e por lá fez morada definitiva. A respeito desta mudança, ele dizia que não havia melhor lugar para se inspirar do que uma mesa de bar, pois lá era o único lugar que a embriaguez gerava frutos literários.
Quando completou 40 anos de idade Durval já estava com mais de vinte cadernos totalmente preenchidos com poesias, rascunhos e pensamentos num geral, eu nem preciso dizer que todos estes cadernos eram de capa azul, que ficavam muito bem guardados em um baú com cadeado, que ficava em baixo de sua cama.
Ao longo desse tempo ele lutou arduamente para tentar publicar os seus escritos, seria a realização de um sonho que ninguém podia mensurar o tamanho; Durval falava que o dia em que visse um livro seu exposto em uma livraria tudo estaria completo, e aí sim ele já poderia morrer. Mas as coisas para Durval nunca foram fáceis, e a publicação de sua obra não haveria de ser.
A cada dia que passava o mundo ia ficando cada vez mais comercial, e o pobre poeta não conseguiu e nem queria seguir este caminho, ele era um pobre vendedor, que morava em um quartinho em Santa Tereza, não dispunha de um diploma de faculdade - o que aos olhos dos demais credencia uma pessoa inteligente – e ele sofria muito com tudo isso, sempre que ia falar com uma editora eles perguntavam se ele tinha algum tipo de formação acadêmica, e ao dizer que não, os editores sequer olhavam a sua obra, e isso o deixava muito puto da vida, pois as editoras estavam procurando diploma, e não talento, coisa que ele tinha de sobra.
Tantas foram as vezes que ele recebeu um não. E mesmo com uma idade um pouco avançada ele tentou entrar para uma faculdade, mas não era o seu foco, ele acabava estudando com displicência e nunca passava, a revolta que o consumia não deixava que ele tivesse êxito nisso, Durval era o tipo de pessoa que não gostava de fazer nada por obrigação, e ele achava um absurdo ter que possuir um diploma para que as pessoas pudessem pelo menos ver a sua obra.
Ele também tentou publicar o seu livro de forma independente, mas isso custava caro, e dinheiro ele não tinha, e essa hipótese acabou caindo por terra rapidamente. Sem ter muito que fazer quanto a isso, ele seguiu escrevendo, aquilo era a sua vida, era o seu ar.
A cada ano que passava o baú ia ficando mais cheio, as palavras passaram a ter muito mais melancolia e tristeza do que antes, às vezes até raiva; o medo de se tornar uma pessoa frustrada incomodava Durval profundamente, ele falava para os amigos que todo o ser humano deveria deixar um legado na terra, seja ele qual fosse, e o dele seria os seus livros. Definitivamente Durval não queria morrer e deixar para o mundo cadernos de capas azuis trancados dentro de um baú de madeira velha, para que as traças pudessem comer toda a sua história.
Mesmo com o passar do tempo Edézio continuava muito fã de Durval, só que ambos passaram a não se entender muito bem, pois tinham ideologias diferentes, Edézio havia se tornado um capitalista nato, só queria saber de ganhar dinheiro e realizar o sonho de ficar rico, enquanto isso Durval não tinha grandes ambições, a não ser publicar a sua obra, e isso tudo acabou deixando os irmãos um tanto distantes. Durval não era daqueles poetas que mostrava as suas obras para qualquer um, e a pessoa que mais lia os seus escritos era justamente o irmão Edézio, que com o distanciamento acabou ficando sem saber o conteúdo dos cadernos de capas azuis dos últimos anos. Certa vez em Santa Tereza os dois até discutiram a respeito disso.
- Pô Durval, quero mostrar as tuas poesias para sua sobrinha, minha filha Gabriela gosta muito de escrever e com certeza iria adorar os seus textos.
- Traz minha sobrinha aqui que eu leio tudo para ela, mas pra você eu não dou nada! Você virou um porco capitalista, só quer saber de comprar coisas fúteis e ficar rico, no tempo em que eu te deixava ler as minhas obras você era totalmente diferente, hoje não passa perto de ser digno de ler uma folha dos meus cadernos.
Os anos e as decepções acabaram criando um poeta ranzinza que a cada dia entrava com mais força no mundo do álcool, Durval chegou a um ponto de estar tão desanimado com a vida, que na mesa de bar o seu caderno já não o acompanhava mais, os amigos viam que o poeta já havia morrido, só estava esperando fechar os olhos. Nessa época de total desilusão, Durval entrava em casa, via o seu caderno de capa azul aberto em cima da mesa, e a única coisa que ele conseguia colocar nas linhas eram lágrimas, pois as palavras já não tinham mais forças para ganhar vida.
Daí em diante as coisas só foram piorando, Durval acabou adoecendo, e já nem saía mais de casa, a única pessoa que aparecia para ver como ele estava era Edézio, que apesar dos conflitos nunca abandonou o irmão.
Certo dia, já com seus 52 anos de idade Durval teve uma crise de cirrose e ficou internado em um hospital, a situação era bem crítica, as coisas ficaram feias para o poeta. Edézio acabou ficando no hospital para acompanhar o irmão, até que tarde da noite Durval despertou repentinamente do sono e pediu para que chamassem seu irmão.
- Edézio, me arruma um papel e uma caneta, agora!
Imediatamente Edézio rasgou uma folha de um receituário que estava por perto, pegou uma caneta e deu tudo para o irmão, que rabiscou algumas palavras e devolveu-lhe o papel muito bem dobrado, juntamente com um colar que estava em seu pescoço, e neste colar existia uma chave, que logo gerou curiosidade em Edézio.
- Mas irmão, e esta chave, de que é?
- É a chave do meu baú que está em baixo da cama, sempre levei esta chave comigo, e agora quero que ela fique contigo.
- Mas e quanto a este papel?
- Pois então, abra somente depois que sair deste quarto.
- Tudo bem meu irmão, pode deixar, eu irei cuidar muito bem do seu baú até que você volte para casa.
- Eu sei disso. Posso lhe pedir um grande favor?
- Claro.
- Se algo acontecer comigo eu gostaria que tentasse de alguma forma publicar os cadernos do meu baú, quem sabe você tenha mais sorte do que eu, vai que o meu sonho de vida se realize após a minha morte.
- Não fala besteira irmão, você está bem, ta com uma cor boa, vai sair logo daqui, e a gente vai conseguir publicar este livro, pode acreditar.
- Tá certo, você sempre confiante, isso é bom, muito bom.
Depois de ajeitar o irmão na cama, Edézio já estava saindo do quarto quando Durval o chamou.
- Irmão, venha cá, preciso lhe dizer outra coisa muito importante.
- Fale Durval.
- Eu te amo meu irmão, nunca se esqueça disso, posso ter lhe criticado muito na vida, mas eu te amo.
- Eu também irmão, agora descansa.
Com os olhos marejados Edézio saiu do quarto, e antes que ele pudesse abrir o papel para ver o que estava escrito, os enfermeiros entraram correndo pela porta que ele havia acabado de sair, um apito sonoro vinha de dentro do quarto de Durval, e infelizmente já era tarde para que algo pudesse ser feito, o poeta havia partido.
Chorando muito, só restou a Edézio ler o papel que o irmão havia acabado de lhe entregar, e neste papel estava uma poesia sem título com as seguintes palavras:

“Morte minha,
receba-me com mais
alegria do que a vida,
que tanto me desdenhou
e tapeou-me a face
com as mãos que podaram meus sonhos.

Morte minha,
não sejas pior do que
sua antecessora.
Não sejas vil,
não sejas ilusória,
sejas apenas acolhedora e sincera,
pois é o que me basta.”

Ao ler aquelas fortes palavras, Edézio determinou para si mesmo que iria conseguir publicar os livros do irmão, e assim ele seguiu sua jornada para cumprir este objetivo.
Por incrível que pareça no mesmo ano em que Durval havia morrido o seu primeiro livro já estava nas livrarias, e o sucesso de vendas foi tão grande que outro foi lançado logo no ano seguinte, e assim por diante.
Edézio passou a viver com a venda dos livros do irmão, e com o tempo as vendas só foram aumentando, e olha que muita coisa ainda estava guardada no baú, ou seja, o acervo de Durval iria ser vasto e bastante rentável, os cadernos de capas azuis haviam se transformado em livros de sucesso, e as pessoas se perguntavam onde que se escondia esse maravilhoso poeta que ninguém conhecia.
Logo Edézio conseguiu ficar rico com a venda das obras, ele dava entrevistas falando do irmão, e de como ele havia lutado a vida toda para ver exatamente tudo que estava acontecendo.
Ironicamente os sonhos de Edézio e Durval estavam sendo realizados; um queria ser rico, e o outro queria apenas suas obras publicadas. Eis que vida e morte se uniram para que Edézio ficasse rico com a publicação das obras do irmão.
Independente do lugar que Durval esteja, com certeza ele já deve ter visto o quão respeitado é um poeta após a sua morte, e com seu humor ácido ele deve ter dito logo de cara:
- Oras, se eu soubesse que isso iria acontecer, com certeza teria morrido mais cedo.

Bruno Rico.